A dança no Egito Medieval - A Ghaziya

0
(Este artigo é parte do livro Dança do Ventre - O corpo como território da Deusa, Isis Zahara)
 
Durante o período um grupo específico de  dançarina profissional, ficou conhecido pela palavra ghaziya (plural:ghawazee). Esse termo é de origem cigana e era utilizado pelos grupos ciganos, para identificar a dançarina de uma determinada tribo que emigrou da Índia até o Egito, em fins do Império Romano.
 
Muitas lendas floreiam sobre as heranças ciganas no Egito, o que se sabe, com precisão, é que a dança desta ghazyia correspondia, no passado, a uma prática ritual da deusa Kali; e por sua vez, Kali é uma divindade ctônia anterior ao panteão hindu, seu ritual consistia na prática de danças eróticas femininas com aceleradas e compulsivas vibrações do abdômen. Atualmente, a Raks al Sharq considera essa substancial influência cigana, entretanto, os ciganos não foram os únicos responsáveis pela disseminação desta forma de dança, pois a herança dos rituais de fecundidade estava presente na memória cultural do povo egípcio.
 
No Egito a ghaziya era uma mulher pobre, de vida nômade, que dançava em troca de pouco dinheiro e um pedaço de pão azedo. Seus tesouros eram suas roupas detalhadamente adornadas com as moedas que ganhava como forma de assegurar suas riquezas. Nada poderia ser guardado distante de seu corpo, por isso sobrepunham as saias, os lenços e as jóias. Essas mulheres transitavam pelos vilarejos, oásis e acampavam nas margens do Nilo, em áreas periféricas como Esna e Luxor. Trabalhavam conciliando dança, prostituição, vidência e como parteiras e carpideiras. Os símbolos antigos da Boa Fortuna, fecundidade e Fado ainda sustentavam a imagem dessas mulheres.
Por serem auto-suficientes economicamente, ficaram conhecidas por: não cederem ao domínio masculino sobre suas vidas, o que nem sempre foi verdade, pois elas casavam com os homens de suas tribos, que trabalhavam, por sua vez, como músicos e atuavam como sendo seus patrões.
Executavam uma espécie de dança ondulatória com evidentes interações lascivas, como descreve a citação abaixo:

    “Criava-se um certo grau de excitação sexual em virtude da música e das vozes palpitantes das cantoras, das letras eróticas, das drogas e do álcool, das jóias rutilantes, das tornozeleiras e braceletes     se entrechocando, dos ventres nus, dos sorrisos cintilantes, dos cabelos soltos. Caudais mulheres, vinho e música corriam não só nas cortes reais e nos bazares, mas também nas casernas.”[1]

Com a islamização da sociedade egípcia em 640 d.C., a aceitação da dança tornou-se uma das grandes contradições da doutrina islâmica, que discrimina a mulher como guardiã da honra de sua família e tendo como ponto básico, a proibição de exibir o corpo na presença de estranhos. As dançarinas tornaram-se as únicas mulheres que transgrediam a lei religiosa, aos poucos os hábitos foram sincretizados, ainda que de forma marginalizada, até que todos os ciganos tornaram-se também muçulmanos.
Durante esse processo de transição a nova religião incorporou antigos hábitos pagãos. Sempre muito rigorosas em suas devoções, as ghawazee passaram a participar dos mouleds[2], festas religiosas que comemoram o aniversário de um santo muçulmano acontecendo em seus túmulos.

Durante o século XIII, surgiu uma Ordem islâmica mística, conhecida atualmente por Sufismo;[3]  Os integrantes do sufismo eram chamados de dervixes[4], utilizavam a dança como oração, cantavam e declamavam poemas místicos.
Existia uma semelhança entre a condição da dançarina ghazyia e a do dervixe. Ambos poderiam ser de qualquer condição social e poderiam ir aonde quisessem, ninguém indagava suas origens e seus destinos. Esta tolerância, de certa forma, protegeu a arte ghazyia  até o domínio britânico.

A natureza amorosa de suas danças fazia delas notoriamente impudicas:

                        “extremamente indiscretas em sua linguagem, principalmente em insultos.” [5]

Apreciavam a sensação de constante enebriamento utilizada nas descrições de Richard Burton, através da palavra árabe kayf , um saborear da existência animal”, e que era provocado pelo ópio e haxixe. Essa sensação de constante enebriamento foi bem retratada nas pinturas orientalistas e disseminou o estereótipo da indolência, da preguiça oriental.
Porém, suas danças não tinham nada de embriaguês passiva como mostram as gravuras, ao contrário, eram dotadas de uma impressionante expressividade dramática. A ghazyia falava com todo o seu corpo, diversas vezes envolvendo a mímeses, contorções acrobáticas, equilíbrio de taças[6] cheias de bebida e utilização sincronizada, com a dança, de instrumentos de percussão.
A partir de 1860 surgiram várias descrições da dança das ghawazee, denominadas por Raks al Nahal. Escritores comentam o isolamento e o controle de diferentes partes do corpo,movimentos circulares do torso e aceleração contínua dos quadris.
O pintor inglês James ST. John descreveu uma dança ghazyia numa pequena vila próximo às pirâmides:

“Segurando uma taça, cheia de água de rosas, a gawazyia executou os mais rápidos e difíceis movimentos, repetindo o que as anteriores já haviam feito, porém, não foi nada trivial.
Ela dançava com tanta naturalidade, sem derramar uma só gota da água, como se a taça estivesse vazia. Depois, de um tempo, ela parou e num instante ficou de frente para um dos rapazes que a assistia, envolveu-o, delicadamente, com seus braços, sem tocá-lo, recuou por um momento e continuou sua dança. Mais tarde, ela parou e, de frente para ele, respingou, vagarosamente, algumas gotas da água sobre as roupas do rapaz,beijou seus lábios e saiu retornando ao interior da tenda.”[7]

As ghawazee aparecem nas pinturas, sempre nas ruas, em apresentações públicas e em cenários notavelmente pobres.  Numa gravura de 1870, duas jovens executam sua arte para dois homens, aparentando ser ocidentais, que as assistem discretamente, enquanto uma terceira com o rosto coberto à maneira beduína[8]  toca uma darabucka[9]. Uma das jovens segura um bastão e parece girar, a outra tem a boca aberta e os olhos fechados dando a idéia de que estaria cantando. O cenário é uma construção simples com tetos de junco semelhantes aos casebres da periferia do Egito.
Algumas ghawazee trabalhavam como musicistas, aliás, os instrumentos como o: daff[10] ,a darabukka e o rebab[11] foram de domínio exclusivamente feminino.
Atualmente os ciganos egípcios são islâmicos e vivem, em sua grande maioria, do turismo.


[1] RICE,1991.p.56.
[2] Tais festas eram promovidas pelas confrarias islâmicas, as zawias. Estes centros comerciais são vestígios do Império Romano na África. As confrarias correspondem ao Islã popular divergente do erudito.
[3] Sufismo:movimento islâmico místico, sua  filosofia remete a elementos femininos, como a rosa, a dança com saias e cálices cheios de vinho, numa alusão ao útero cheio de sangue.
[4] Existem os dervixes  que  se organizam em ordens religiosas, participam de cultos num ambiente privado, outros são andarilhos, vivem nas ruas com mendigos.
[5]RICE, ,1991. p. 97.
[6]Semelhante a dança de Pomba-Gira com taças.
[7] ST. JOHN,1845. p. 274.

[8]Tribos nômades do deserto, excluídos socialmente dos centros urbanos.
[9] Instrumento de percussão confeccionado com pele e cerâmica.
[10] Pandeiro árabe
[11] antepasado da rabeca, violino de duas cordas.

0 comments:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...